March 2, 2010

Sentimento

Meu primeiro impulso foi pensar que era resquício de algum dom da infância, mas não tenho amostragem que prove que todas as crianças eram assim. Sei que eu era, e certamente também ela. Com todas as diferenças de gostos e estilos de vida, nossas semelhanças se situam na superfície do coração, refletindo em nosso modo de enxergar o mundo.
Certos momentos da vida se apresentam a nós com diferentes lentes ou capas, algumas delas colocadas por nós mesmos, por culpa de nossa excitação, um ponto de vista exagerado, expectativas falsas.
Manter o teatro e sorrir seria o ideal. Mas não nos engana por muito tempo.
Tem uma hora em que tudo se clarifica. Até demais, acendem o farol alto. É preciso ir embora.
Não tente entender se nunca passou por essa experiência, de sentir o peso do ar, o peso das coisas, e perceber onde você realmente deveria estar. Chame de loucura ou o que quiser. Sensibilidade.
A porta se abriu simples. Naquele quarto, troféus. Uma sombra oca passava às vezes, entre fumaça e sons abafados. Nenhuma palavra. Ou sombras engaioladas, egocêntricas, sem envolvimento, ocupadas, esquivas. A dor era por quem podia chegar perto, mas não tanto. Um sentimento acumulado por muito tempo, tempo demais para que fosse possível se cumprir. E cada centímetro, cada item se juntava à sensação de estar dentro, porém fora. Lenta tortura. Cansa.
Abrimos as portas, o forno, a geladeira. Pegamos pratos, talheres, ovos. Puxamos cadeiras, gavetas e conversas. No entanto, ninguém ali se esforçou de qualquer modo para fazer com que ficássemos realmente à vontade.
Quem quer faz acontecer.
E sozinhas, do lado de fora, falamos. Sempre pondero em derramar, pois nunca se sabe o que nós dizemos vai realmente causar. Podemos encontrar cumplicidade, ou não. Podemos provocar reação, ou ser em vão. Houve despertamento... Falamos de desejo, e da falta dele. Falamos de felicidade e leveza, e da busca por elas. Ao voltar para dentro, o que nós duas sentimos naquele lugar não foi preciso expressar em voz alta. Nada nos fazia ficar à vontade. Faltava sentimento. E para algumas pessoas, como eu e ela, isso importa. E a gente não suporta.